quarta-feira, 29 de agosto de 2007


CAUTELA
Debruçou-se à beira de um desejo e viu um abismo.
Não se precipitaria como de outras vezes.

Uma trilha havia de ser aberta, aos poucos, com prazer e trabalho. Tudo pedia para ser minuciosamente cuidado – que flores plantaria, o percurso, a largura da pequena estrada, as pontes, uma clareira, um mirante que facilitasse ver o nascer da lua cheia.
E nunca mais se esqueceria de uma cabana que abrigasse a solidão com conforto e sossego.

Debruçou-se à beira do desejo e viu um precipício.
Nenhum motivo para abismar-se.

domingo, 26 de agosto de 2007


DOMINGO

Pronto, que vou me render ao tamanho dos meus braços e das minhas pernas. Vou a lugar algum agora, me deixem. Tudo o que quero lá fora cabe no meu quarto, no meu piano e nas cores das minhas tintas.
Estou pequenina, minúscula, ocupo metade do meu espaço habitual.
Cutuco uma saudade pra sofrer um pouquinho. Sofrer um pouquinho colore o céu com mais azul e derrama um pequeno drama no meu borrão de tinta.
Acho que é uma flor que se pinta.
E que se abre porque outro caminho não sabe.

terça-feira, 14 de agosto de 2007


ATRÁS DA IGREJA

A mulher que recolhia pelos olhos pedaços infinitos do mundo por onde passava, achou de esconder seu olhar atrás da igreja. Fixo, almejava sossego, como se pudesse estancar a turbulência dos pensamentos.
Atrás da igreja parecia adequado e vazio. Quase não tinha nem flor, pois quase nem era um jardim. Era um quase nada onde os olhos podiam parar escondidos ali.
A mulher era cansada de olhar pras coisas, olhava demais e tudo virava motivo.
A mulher era cansada de motivo. Nuvem, pedra, criança, calçada, flor, parede velha, gente, vidro quebrado, lagartixa, avião, chuva, cão vadio, garrafa, papel amassado, esquina, poeira voando no vento, tudo era motivo e cansava.
A mulher pegou gosto de esconder seu olhar atrás da igreja, que ali cansava menos. Dizem que foi deixando de ser até virar planta. Só à noite dá pra ver sua sombra que se arrisca a passear no escuro

domingo, 5 de agosto de 2007


ESPECTRO


Há um espectro de mim
que esparrama um rastro de hortênsias
e aroma de almíscar
É um fantasma inebriado
e diz obscenidades
Gosto de vê-lo pairando
e ouvir o seu canto
Belas são suas vestes de vento
e luz
Lá vai ele entre as árvores
te buscar e soprar em seu ouvido

o que você tem esquecido


FOTOGRAFIA

Minha imagem
caiu da fotografia
que ficou
subtraída de mim

O que restou no papel
foi coisa parecida com ausência
com despedida
com tempo que passa

Minha imagem
foi tentar outro sorriso
outra posição dos braços
outro ângulo de olhar

Ficou fotografia sem mim
e eu sem moldura

difícil não ter contornos

quinta-feira, 2 de agosto de 2007




Árvores são boas. É bom olhar pra elas, visto que acolhem e convidam. Árvores dizem sobre tempo que passa e sobre nada. Há algo das raízes que alivia pensar em não tê-las. Das folhas é sabido que caem, que outras vêm e que todas se prestam ao vento. Algo dos galhos sugere percursos e desvios em comovente inexatidão. E sombras, sempre sombras. E um quê que parece tocar o céu. Árvores são boas para pausas.