sexta-feira, 25 de abril de 2008


DE UMA CONVERSA

Muito belo o corrimão, e como é funcional, não?

Escolhi com cuidado, mas você ainda não teve o prazer de ver minhas xícaras novas! Os pires vêm com um sistema de encaixe e drenagem dos resíduos dos líquidos que não permite que um pingo sequer estrague o prazer de trazê-las à boca com a máxima segurança, sem roupas manchadas, uma maravilha!

Estou louco para experimentá-las, fiquei curiosíssimo! Mas o corrimão, como é anatômico e a textura permite um contato sem asperezas nem choque de temperaturas. A mão é acolhida e uma sensação de segurança toma conta do corpo todo, além, é claro, da estética perfeita, que dispensa exageros, mas que é longe de ser só funcional.

Sabia que ia reparar tudo isso! Tenho também, que descobri numa loja perfeita que visitei numa de minhas viagens, um saca-rolhas que automaticamente saca as rolhas deles mesmos para que não tenhamos o trabalho de continuar girando qualquer dispositivo pra esse fim. Ele saca as rolhas das garrafas e de si mesmo, imagina que descanso!

Olha, também a mim fascina a funcionalidade associada a um belo design e com certeza vou encomendar um desses, mas mudando um pouco de assunto, ando muito irritado e isso me preocupa, já marquei até um retorno no médico que me acompanha nessas questões vamos dizer assim psíquicas, sabe como é.

Claro, eu mesma continuo firme com meu remédio controlado pra pessoa descontrolada, sem ele, não sei o que seria de mim e da minha coleção de objetos bonitos e funcionais. Mas me diga, amigo, o que anda irritando você afinal?

A cor da fórmica do elevador do meu prédio é absolutamente insuportável.

Te entendo completamente.

quarta-feira, 23 de abril de 2008


DO AMOR

Escorrem águas por entre meus dedos finos, pois que tudo se liquidifica e derrama. Lentos os percursos, também os das águas profundas, tudo se dispôs à lentidão.
Abstratas as impressões, códigos de passagens, sinais para a leitura dos sentidos.
Lento, lento, o movimento que deságua, a revelar todas as invenções, supostos motivos pra seguir.
O que se vê é cenário, ilusão, até as guerras eternas, as injustiças, as vaidades, a dor dilacerante das misérias humanas, um intervalo entre a vida e nada.
Não agir é possível e cabe.
Consigo ouvir uma música tão perfeitamente bela enquanto levanto vôo e atravesso as montanhas pra tentar chegar a lugar nenhum – líquido orgasmo da efêmera beleza quando se revela pura, algo que insiste e sustenta.
(alguém diria ser o amor)

segunda-feira, 21 de abril de 2008


CUMPRIR ANOS


Cumpro anos enquanto crescem meus cabelos, resolvi que os terei novamente suficientes para uma longa trança.
Muitos fios brancos, cuidadosamente pintados, lembro-me quando os tinha curtos e sonhava com a sensação deles longos, roçando as minhas costas.
Cumpro anos, mais um que se encerra em plena indisponibilidade para festejos.
Cumpro anos, que sou cumpridora das minhas tarefas. Cumpri a conclusão desse último muito aborrecida por passar mais um sem os festejos mais que merecidos, fazer o que, indisponibilidade é o que é.
Cumprir anos me parece diferente de fazer aniversário.
Cumpro anos nos meus cabelos a crescerem mais ralos e nos desencantamentos mais fartos, mas agora, passados uns dias, já tenho o prêmio da minha ironia a se restabelecer com tantos ingredientes disponíveis pro seu alimento.
E portanto, resolvi que só hoje cumpro anos e brindo comigo, eu, minha taça de vinho e meus cabelos atrapalhados por um certo bom humor que me guiou pra achar esta, enfim, uma bendita lua cheia.

quarta-feira, 16 de abril de 2008


RESPOSTA A UMA AMIGA

Obrigada, minha flor.

Às vezes fico constrangida com esses tristumes. Tenho problema sério de prolongamento das dores e me sinto estúpida quando penso no mundo. Acaba que fico concentrada demais nas minhas merdas quando há tantas outras merdas infinitamente maiores com as quais eu poderia me distrair.
Desculpe, Poli (ou Ana?), está bem, sei que também há muitas flores nos jardins, lindas criancinhas nascendo e borboletas anunciando as belezuras do mundo.
Pessoas lindas que me amam e que eu amo, essas tenho mesmo coleção, com você encabeçando a longa fila.
Tenho andado muito dada aos desencantamentos, mas sei que dias melhores virão e, pra que sejam melhores de fato, estou fazendo um curso (dificílimo) de separação uns dos outros, cada dia um dia. Mas ando péssima aluna. Nas últimas provas tirei vários zeros e só um dez, assim mesmo foi só num pedacinho de um dos dias (confesso que já era noite), o resto, embolei tudo, uma verdadeira meleca. Mas quem sabe, com muito treinamento (credo! Tantos aniversários e ainda estou nesse estágio!)...
De qualquer maneira, valeu! Sempre é bom lembrar da sua importantíssima existência.
Também te amo e torço por você.
Beijão

domingo, 13 de abril de 2008


PACOTE DE OCORRÊNCIAS

Vem uma ventania, traz um vendaval, deixa uma brisa que de tão boa parece pra sempre, mas vai que o ar se abafa. Abafado fica e demora. Demora o suficiente pra deixar vir um furacão que derruba tudo. Em pleno caos, uma obrigação de comemorar não se sabe bem o que.
Ninguém nasceu, alguém piorou mais um pouco, alguém desceu das montanhas, um amigo embolou-se e partiu.
As crianças crescem, percebem de leve que algo está fora de lugar, não muito mais que isso.
Algumas plantas morrem, bom que são de fácil reposição.
Amor é muito pra repor, amor mesmo dá trabalho e dura.
Ficar só dura também mais que muito.
A vida passa (já ouvi isso).
Difícil passar quando já bem na frente.
Mais ainda começar quando já bem na frente.

sábado, 12 de abril de 2008


NOITE

Bendita é a noite, que apaga o dia, que leva a dor para muito distante da claridade. Dor iluminada pelo dia é indecente e ostensiva, feia, medonha.
A noite acolhe a dor.
O silêncio é cúmplice do amor das crianças, seus sonos puros, seus cansaços desimpregnados, verdadeiros de motivos. Amor que não tem escrúpulo de ser manifestado em exageros sinceros.
Me acolhe, noite, me faz um carinho, faz de cada soluço meu uma gota de chuva, uma estrela, um esquecimento.

quarta-feira, 9 de abril de 2008


RAÍZES

Grotesca a imagem da mulher a arrancar suas raízes do chão com tanta dificuldade, a lhe custar esforço e dor. Eram como tentáculos, autônomos, ela os arrancava e eles se metiam a adentrar a terra por própria conta. Descabelada, cabelos e raízes a moverem-se, uma estranha dança de desgrudamento, de aflição.
Triste cena da mulher na luta do desgarramento, já que aquele solo não lhe permitia, aquele vento não lhe permitia.
Vai a mulher embora, arrastando suas raízes arrancadas e as raízes a puxar a mulher como se não quisessem desistir nunca.
E ela a dizer, essas não, essas não, que me bastem as outras de onde crescem as árvores reais (mesmo quando frágeis) que me fazem viver.

domingo, 6 de abril de 2008


PINGUELA

Ei você aí na ponte!

Não posso olhar, tenho medo de cair.

É longa mesmo, é estreita, nem é ponte, frágil pinguela.

Tenho que ir devagar, me custa.

Estou te olhando, vejo que você vai.

Vou por dever. Veja, lá atrás há um incêndio que consome tudo. Aqui, agora, uma névoa quase me tira a visão e ainda tenho que levar comigo o que me pertence.

E lá na frente?

Lá é longe, ainda. Mal consigo ver que existe, parece não ter fim a travessia.

É bela a sua roupa, seus cabelos estão crescendo, brancos.

Sei que posso voar daqui, perder os contornos, me dissolver na névoa, extraviar, virar outra coisa que também sou eu. Só que muito do que consigo eventualmente ver me dá náuseas, como um filme passado, sem sentido, sem graça alguma. E então me arrisco a dançar sobre esta longa e frágil pinguela, nesse equilíbrio precário, com meu vestido, meus cabelos brancos e meu sexo inquieto. Debruço meu tronco sobre estas cordas que servem pra algum apoio das mãos, debocho desse limite tênue entre o que se desfaz e o que ainda não existe, arrisco cair, dou risada e choro muito.
Mas chega, agora. Precisei dar esses gritos. Vou prosseguir.

Estou te olhando, vejo que você vai.

Eu e o que me pertence, mesmo que meus dedos sangrem quando se faz insuportável o peso da bagagem da qual não abro mão, mesmo quando se faz tão leve que as minhas asas içam meu corpo, querendo me levar pra onde não tenho limites nem contornos e os risos e os prantos são iguais. Mesmo assim.

Ei você aí na pinguela!

Me deixa ir.