sábado, 27 de outubro de 2007


CANTIGA DO DESMITO

Ao cumprir o esperado
da espera do amado
teço minhas tramas
enfeito meu bordado

Mas não penses que o faço
na conformidade de uma sina
Do meu canto de espera
não ouvirás triste lamento
À dor da saudade
cantarei até obscenidades
e direi ao vento
que mantenho uma porta aberta
pra eventuais visitas

E se demorares demasiado,
meu amado
me enfeito com meu tecido
(dever cumprido)

E serve o teu jantar
que eu não vou voltar

terça-feira, 23 de outubro de 2007


UM TIPO DE GENTE

Tem gente que é afeiçoada à falta. Em tudo procura buraco, vazio, procura o que não há, o que supostamente falta, mesmo que ninguém tenha dado falta.
A fartura pode rodear essa gente, vai sempre haver algo que falta.
Essa gente gosta de queixar da falta, de planejar as próximas faltas, supor que alguma coisa vai faltar.
O dia pode estar lindo, falta sombra.
Se tem sombra, falta sol.
Se tem sol, falta chuva.
Se tem chuva, outra vez falta sol.
Até onde tem amor, amor não vê, vê falta.
Nos dias de celebração há uma prontidão em descobrir o que falta.
A falta acaba se afeiçoando a essa gente e não larga nunca mais.
Bando de gente ranzinza, que acaba não fazendo nenhuma falta.

terça-feira, 16 de outubro de 2007


RECURSO


De colecionar manhãs atrasadas, soltou um imenso suspiro de nuvens querendo chover.
Esvaziou gavetas, se desfez de alguns guardados, a outros devolveu vida. Costurou um beijo do amado no decote do vestido mais bonito e saiu assim, fingindo plenitudes.

Quem a viu pensou: essa esbanja espaços preenchidos.

domingo, 14 de outubro de 2007


O HOMEM SEM CHEIRO

O homem perdeu o cheiro. Tem só idéias, ou melhor dizendo, raciocínios, nem mesmo pensamentos.
É magro e se esforça para ser seco, e é.
Muito limpo, quase asséptico, mas só nas externidades, nas ações muito menos.
Os esquecimentos lhe servem para a injustiça. As fantasias e deturpações mais ainda.
Desprovido de qualidades não é nadinha, mas nas perturbações, faltam-lhe todas elas. Freqüentemente perturba-se.
Acha-se encantador de palavras, não para a sedução, mas pra que elas sejam servas de seus desvios. Acha que dizê-las altera a realidade dos acontecimentos. Diz palavra, mas não diz pessoa. A pessoa freqüentemente escapa-lhe da palavra.
Tem olhos molhados, o homem, mas não tem olhar. Dissimula desprezos, não que alguém acredite.
No lugar de sofrer, o homem sem cheiro odeia e assim facilita sua vida. Se não isso, finge bem, quase convence.
Há quem se engane a vida inteira, talvez por não ter aprendido nunca a chorar direito.
O homem sem cheiro parece que é assim. Mas pouquíssimo se sabe sobre ele.
Muita gente, no entanto, conhece alguém um pouco parecido.
Alguém assim, que perdeu o cheiro.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007


LENDA

Primeiro foi um musgo fino
que envolveu a palavra
Em seguida um lodo espesso
tomou conta do que ainda
se tentava dizer
Rompeu-se então o silêncio
brotou que nem mato
que dispensa cuidado
e cresce com a mais remota chuva
Nasceu uma flor miúda
sem cheiro e assustada
de estranho encanto
e revelada beleza
que no seu dizer nada
contava ter sido princesa

quarta-feira, 10 de outubro de 2007


OUTRA CONVERSA


Você, de novo.
Quero invadir seu vestido.
Não pode.
Não sei parar.
Chegará a lugar nenhum de mim, minhas frestas não te cabem.
Trouxe lírios para que você enlouqueça.
Não, não mais, tenho só a lembrança de um perfume, e me basta.
Quero o seu medo.
Não, não mais. De ser quase nada me coube um início sem fim. Agora, fico sempre começando. Medo, nenhum.
Discordo para sempre.
Não quero te convencer e nem preciso. Desisti das tragédias, estou mais simples no meu belo vestido que retiro (ou é retirado) só no quando do meu consentimento e do meu desejo. E na terceira superfície que o contato ínfimo e absoluto entre os corpos provoca, não há fresta nenhuma que se preste a ser invadida por teias de palavras, lembrança de escuros, temores e abismos. Agora só presto pro amor.

terça-feira, 9 de outubro de 2007


















PEQUENO TRATADO SOBRE PESSOA E PALAVRA

Tem pessoa
que encanta palavra
Tem pessoa que usa palavra em vão
Tem palavra que usa pessoa
Tem pessoa que usa palavra
Tem pessoa que não tem palavra
Tem pessoa que entorta palavra
Tem pessoa que planta palavra no chão
Tem pessoa que planta palavra na cara
de outra pessoa
que fica sem palavra
Tem palavra que eleva pessoa
que cura pessoa
que anula pessoa
Tem pessoa que leva palavra pra casa
Tem pessoa que domina palavra
Tem palavra que domina pessoa
Tem palavra que diz palavra
Tem palavra que diz pessoa
Tem pessoa que diz pessoa
Tem pessoa que diz palavra
Tem palavra que é gesto de pessoa
Tem pessoa que não vê palavra
Tem pessoa que não ouve palavra
Tem pessoa que enfeitiça palavra
Tem palavra que é qualquer coisa
que queira a pessoa
Tem pessoa que é qualquer coisa
que queira a palavra
Tem palavra que escapole de pessoa
(parece ter vida própria essa palavra)
Tem pessoa que escapole de palavra
(parece ter vida própria essa pessoa)
Tem pessoa que fica doendo depois de palavra
Pessoa vem antes de palavra
Tem palavra que fica
depois de pessoa
Tem pessoa que fica
além de palavra

Tem pessoa
e tem palavra

terça-feira, 2 de outubro de 2007




NA TRANSPARÊNCIA

Desviou de uns dois fantasmas e entrou numa casa velha e abandonada. Percorreu uns dez corredores, atravessou algumas salas, parou diante de um espelho trincado. Nele, sua imagem estava nua. Olhou-se nos olhos. Uma mulher nua. De outros tempos a mulher, mulher que não há. Dentro do seu novo vestido estava ela e a do espelho e seguiria assim. Os olhos de outono eram só uma memória gravada na transparência. Voltaria àquela casa, muitas vezes talvez, agora sem medo.
Lá fora era noite alta. Levantou os braços e alcançou algumas estrelas que dissiparam entre seus dedos luz e quimera.
Estava muito mais pura.
E no meio da noite escura, muito mais primavera.