sexta-feira, 28 de dezembro de 2007


RETORNO

Apurados os apuros, ficou a mulher deparada com a única tarefa real e talvez a mais difícil. Dar-se a si mesma não como um prêmio, bem mais como dever e única saída. Tomar-se para si era como readmitir o eterno recomeço. Lembrou-se então de um sonho onde duas mulheres salvavam outras duas que se afogavam. No limite do risco da vida, se olharam, as duas mulheres salvadoras, e como se olhassem no espelho, executaram o gesto da salvação como uma coreografia. Debruçaram-se sobre as afogadas e no encontro das bocas, devolveram a elas o ar e a vida.
Nesse beijo ficou gravada uma remota dúvida, que mesmo remota, não perde a condição de dúvida.
Haveria sempre a coragem de buscar o pólo oposto, com a certeza do que nunca se encontra, com a humildade da falta eterna?
Haveria a coragem de recuar? Seria real outro caminho?
E na turbulência da volta, pensou a mulher nas funções, pois o síndico tocou a campainha, preocupado com o extintor de incêndio que havia sido roubado. E pensou se seriam as funções que davam sentido à vida.
Pois sim, as funções. As grandes, poderosas funções e as medíocres, muitas vezes igualmente indispensáveis.
Pequenas ilusões de que a vida é necessária.

domingo, 23 de dezembro de 2007


ENSINANDO ANJOS A BEIJAR

E por que os anjos não se beijam?
É que confundiriam suas línguas pra sempre e eles sabem.
E se ajudássemos, quero dizer, sabemos desconfundir nossas línguas e tudo mais.
Não sei se devemos.
Podemos tentar sem compromisso.
Então vai, chama os anjos, você é quem sabe faze-lo.
Estou chamando. Pronto, estão aqui. Me beija.
Estou com um pouco de medo.
Eu também, mas vamos logo com isso.
Estou confuso, quero te dar uma certeza que não tenho.
Qual?
A de que não confundo minha língua com a sua.
Os anjos estão esperando. Me beija e eles saberão.
Que estrelas são essas que estalam na minha boca?
Amor de anjos.
Vamos parar, minha língua quer a sua pra sempre.
São os anjos que falam por você, pra sempre não existe pra nós, só para os anjos.
Te quero pra sempre.
Eu também, mas não somos anjos, não podemos.

E foram-se os anjos, assustados.
E ficaram os dois, desconfundindo suas línguas, cuspindo e engolindo estrelas.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007


RENDA

Uma renda guardada numa caixa
espera um vestido.
Não haverá.
O rumo se altera
esquecido um sonho.
Outro
não faltará.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

abismar pra cima, rumo ao céu
Cansada das minhas imperfeições e dos meus despreenchimentos, providenciei uma ou duas conformidades. De nada me serviram, pois que tenho natureza inquieta. Todo o tempo que tenho pra frente ficou subitamente comprimido no meu peito, paralisante e explosivo. Busquei um repertório de quietudes pra tomar uma gota a menos do meu ansiolítico. Em vão. Acordar pela manhã ficou sendo tarefa complicadíssima, é preciso treinamento pra tomar meu café sozinha e respirar ao mesmo tempo.
E tinha um poeminha que era assim:

CONSTATAÇÃO

Sou demorada para auroras
Só clareio lá pras tantas do dia
Meu sabiá não fugiu da gaiola
Meu bem-te-vi não te viu

É isso por hoje.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007


POEMA PARA DANÇAR

Eu queria
dançar um poema
Tocá-lo com os pés
Com os braços
trazê-lo ao prumo
Com um giro
alterar seu curso

Dar-lhe espaço

Surpreendê-lo com um salto
Jogá-lo ao chão
arrastar, rolar, apoiar
Exaurir seu cerne
ao repetir, repetir
e repetir o que se repetiu
com um sempre
que se sabe finito
Queria dar-lhe meu tronco
(e o que dentro, no centro habita)
Possuí-lo com os quadris
mover
que tudo é movimento
E saber dar-lhe um fim
suado
e ofegante


quarta-feira, 14 de novembro de 2007


PALPITAÇÃO

De me queixar
adoeci
De amar
sarei
Do seu beijo
me fartei
De palpitar
enfartei

(palpitei
um palpite
tão adequado
que ao seu lado
ressuscitei)

sexta-feira, 2 de novembro de 2007




RECEITA

As noites
acometidas de estrelas
são feitas pra namorar
Quando não se tem namorado
servem pra sonhar
Se o namorado faz dor na gente
servem pra chorar
Se o momento não é de amores
pode-se andar a esmo

Nas noites
não acometidas de estrelas
o cardápio pode ser o mesmo

sábado, 27 de outubro de 2007


CANTIGA DO DESMITO

Ao cumprir o esperado
da espera do amado
teço minhas tramas
enfeito meu bordado

Mas não penses que o faço
na conformidade de uma sina
Do meu canto de espera
não ouvirás triste lamento
À dor da saudade
cantarei até obscenidades
e direi ao vento
que mantenho uma porta aberta
pra eventuais visitas

E se demorares demasiado,
meu amado
me enfeito com meu tecido
(dever cumprido)

E serve o teu jantar
que eu não vou voltar

terça-feira, 23 de outubro de 2007


UM TIPO DE GENTE

Tem gente que é afeiçoada à falta. Em tudo procura buraco, vazio, procura o que não há, o que supostamente falta, mesmo que ninguém tenha dado falta.
A fartura pode rodear essa gente, vai sempre haver algo que falta.
Essa gente gosta de queixar da falta, de planejar as próximas faltas, supor que alguma coisa vai faltar.
O dia pode estar lindo, falta sombra.
Se tem sombra, falta sol.
Se tem sol, falta chuva.
Se tem chuva, outra vez falta sol.
Até onde tem amor, amor não vê, vê falta.
Nos dias de celebração há uma prontidão em descobrir o que falta.
A falta acaba se afeiçoando a essa gente e não larga nunca mais.
Bando de gente ranzinza, que acaba não fazendo nenhuma falta.

terça-feira, 16 de outubro de 2007


RECURSO


De colecionar manhãs atrasadas, soltou um imenso suspiro de nuvens querendo chover.
Esvaziou gavetas, se desfez de alguns guardados, a outros devolveu vida. Costurou um beijo do amado no decote do vestido mais bonito e saiu assim, fingindo plenitudes.

Quem a viu pensou: essa esbanja espaços preenchidos.

domingo, 14 de outubro de 2007


O HOMEM SEM CHEIRO

O homem perdeu o cheiro. Tem só idéias, ou melhor dizendo, raciocínios, nem mesmo pensamentos.
É magro e se esforça para ser seco, e é.
Muito limpo, quase asséptico, mas só nas externidades, nas ações muito menos.
Os esquecimentos lhe servem para a injustiça. As fantasias e deturpações mais ainda.
Desprovido de qualidades não é nadinha, mas nas perturbações, faltam-lhe todas elas. Freqüentemente perturba-se.
Acha-se encantador de palavras, não para a sedução, mas pra que elas sejam servas de seus desvios. Acha que dizê-las altera a realidade dos acontecimentos. Diz palavra, mas não diz pessoa. A pessoa freqüentemente escapa-lhe da palavra.
Tem olhos molhados, o homem, mas não tem olhar. Dissimula desprezos, não que alguém acredite.
No lugar de sofrer, o homem sem cheiro odeia e assim facilita sua vida. Se não isso, finge bem, quase convence.
Há quem se engane a vida inteira, talvez por não ter aprendido nunca a chorar direito.
O homem sem cheiro parece que é assim. Mas pouquíssimo se sabe sobre ele.
Muita gente, no entanto, conhece alguém um pouco parecido.
Alguém assim, que perdeu o cheiro.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007


LENDA

Primeiro foi um musgo fino
que envolveu a palavra
Em seguida um lodo espesso
tomou conta do que ainda
se tentava dizer
Rompeu-se então o silêncio
brotou que nem mato
que dispensa cuidado
e cresce com a mais remota chuva
Nasceu uma flor miúda
sem cheiro e assustada
de estranho encanto
e revelada beleza
que no seu dizer nada
contava ter sido princesa

quarta-feira, 10 de outubro de 2007


OUTRA CONVERSA


Você, de novo.
Quero invadir seu vestido.
Não pode.
Não sei parar.
Chegará a lugar nenhum de mim, minhas frestas não te cabem.
Trouxe lírios para que você enlouqueça.
Não, não mais, tenho só a lembrança de um perfume, e me basta.
Quero o seu medo.
Não, não mais. De ser quase nada me coube um início sem fim. Agora, fico sempre começando. Medo, nenhum.
Discordo para sempre.
Não quero te convencer e nem preciso. Desisti das tragédias, estou mais simples no meu belo vestido que retiro (ou é retirado) só no quando do meu consentimento e do meu desejo. E na terceira superfície que o contato ínfimo e absoluto entre os corpos provoca, não há fresta nenhuma que se preste a ser invadida por teias de palavras, lembrança de escuros, temores e abismos. Agora só presto pro amor.

terça-feira, 9 de outubro de 2007


















PEQUENO TRATADO SOBRE PESSOA E PALAVRA

Tem pessoa
que encanta palavra
Tem pessoa que usa palavra em vão
Tem palavra que usa pessoa
Tem pessoa que usa palavra
Tem pessoa que não tem palavra
Tem pessoa que entorta palavra
Tem pessoa que planta palavra no chão
Tem pessoa que planta palavra na cara
de outra pessoa
que fica sem palavra
Tem palavra que eleva pessoa
que cura pessoa
que anula pessoa
Tem pessoa que leva palavra pra casa
Tem pessoa que domina palavra
Tem palavra que domina pessoa
Tem palavra que diz palavra
Tem palavra que diz pessoa
Tem pessoa que diz pessoa
Tem pessoa que diz palavra
Tem palavra que é gesto de pessoa
Tem pessoa que não vê palavra
Tem pessoa que não ouve palavra
Tem pessoa que enfeitiça palavra
Tem palavra que é qualquer coisa
que queira a pessoa
Tem pessoa que é qualquer coisa
que queira a palavra
Tem palavra que escapole de pessoa
(parece ter vida própria essa palavra)
Tem pessoa que escapole de palavra
(parece ter vida própria essa pessoa)
Tem pessoa que fica doendo depois de palavra
Pessoa vem antes de palavra
Tem palavra que fica
depois de pessoa
Tem pessoa que fica
além de palavra

Tem pessoa
e tem palavra

terça-feira, 2 de outubro de 2007




NA TRANSPARÊNCIA

Desviou de uns dois fantasmas e entrou numa casa velha e abandonada. Percorreu uns dez corredores, atravessou algumas salas, parou diante de um espelho trincado. Nele, sua imagem estava nua. Olhou-se nos olhos. Uma mulher nua. De outros tempos a mulher, mulher que não há. Dentro do seu novo vestido estava ela e a do espelho e seguiria assim. Os olhos de outono eram só uma memória gravada na transparência. Voltaria àquela casa, muitas vezes talvez, agora sem medo.
Lá fora era noite alta. Levantou os braços e alcançou algumas estrelas que dissiparam entre seus dedos luz e quimera.
Estava muito mais pura.
E no meio da noite escura, muito mais primavera.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007


Olha, um gato dorme sobre o tapete e viver passa.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007



“Quando choraste, foi só por ti e não pela admirável impossibilidade de te juntares a ela através da diferença que vos separa.”
Marguerite Duras

UMA CONVERSA

Toma um chá, ela disse.
Não.
Então, senta, descansa um pouco.
Não.
Viu o jardim, como está florido?
Digamos que não entrei de olhos fechados.
E o que te trouxe?
Precisava não vê-la.
Mas aqui estou, sempre eu.
Vim outra vez para não vê-la. Quero não te ver pra sempre.

O chá derramou-se sobre a mesa. Ela trocou a toalha, foi até o jardim e colheu algumas flores que colocou no jarro colorido de porcelana e em seguida acendeu uma a uma todas as velas.

Aqui as noites são calmas e belas e os dias têm sido bons pra mim.
Pouco me importa, agora vou embora mais uma vez.
Seus sapatos estão sujos, posso ver suas pegadas.
Não olho por onde ando e nem quero.
Então, adeus.
Voltarei sempre para não vê-la, mesmo que eu diga que não venho mais, você sabe.
Pouco me importa, os dias têm sido bons pra mim, e às noites, você continuará não me vendo, só que sem me ver, pois não estou mais no mesmo lugar para que não me veja. E no rastro de suas pegadas, por esse caminho que você percorre sem olhar, me verá em todas as chuvas e verá também todas elas, as que você não quis ver e nunca esqueceu.

quarta-feira, 29 de agosto de 2007


CAUTELA
Debruçou-se à beira de um desejo e viu um abismo.
Não se precipitaria como de outras vezes.

Uma trilha havia de ser aberta, aos poucos, com prazer e trabalho. Tudo pedia para ser minuciosamente cuidado – que flores plantaria, o percurso, a largura da pequena estrada, as pontes, uma clareira, um mirante que facilitasse ver o nascer da lua cheia.
E nunca mais se esqueceria de uma cabana que abrigasse a solidão com conforto e sossego.

Debruçou-se à beira do desejo e viu um precipício.
Nenhum motivo para abismar-se.

domingo, 26 de agosto de 2007


DOMINGO

Pronto, que vou me render ao tamanho dos meus braços e das minhas pernas. Vou a lugar algum agora, me deixem. Tudo o que quero lá fora cabe no meu quarto, no meu piano e nas cores das minhas tintas.
Estou pequenina, minúscula, ocupo metade do meu espaço habitual.
Cutuco uma saudade pra sofrer um pouquinho. Sofrer um pouquinho colore o céu com mais azul e derrama um pequeno drama no meu borrão de tinta.
Acho que é uma flor que se pinta.
E que se abre porque outro caminho não sabe.

terça-feira, 14 de agosto de 2007


ATRÁS DA IGREJA

A mulher que recolhia pelos olhos pedaços infinitos do mundo por onde passava, achou de esconder seu olhar atrás da igreja. Fixo, almejava sossego, como se pudesse estancar a turbulência dos pensamentos.
Atrás da igreja parecia adequado e vazio. Quase não tinha nem flor, pois quase nem era um jardim. Era um quase nada onde os olhos podiam parar escondidos ali.
A mulher era cansada de olhar pras coisas, olhava demais e tudo virava motivo.
A mulher era cansada de motivo. Nuvem, pedra, criança, calçada, flor, parede velha, gente, vidro quebrado, lagartixa, avião, chuva, cão vadio, garrafa, papel amassado, esquina, poeira voando no vento, tudo era motivo e cansava.
A mulher pegou gosto de esconder seu olhar atrás da igreja, que ali cansava menos. Dizem que foi deixando de ser até virar planta. Só à noite dá pra ver sua sombra que se arrisca a passear no escuro

domingo, 5 de agosto de 2007


ESPECTRO


Há um espectro de mim
que esparrama um rastro de hortênsias
e aroma de almíscar
É um fantasma inebriado
e diz obscenidades
Gosto de vê-lo pairando
e ouvir o seu canto
Belas são suas vestes de vento
e luz
Lá vai ele entre as árvores
te buscar e soprar em seu ouvido

o que você tem esquecido


FOTOGRAFIA

Minha imagem
caiu da fotografia
que ficou
subtraída de mim

O que restou no papel
foi coisa parecida com ausência
com despedida
com tempo que passa

Minha imagem
foi tentar outro sorriso
outra posição dos braços
outro ângulo de olhar

Ficou fotografia sem mim
e eu sem moldura

difícil não ter contornos

quinta-feira, 2 de agosto de 2007




Árvores são boas. É bom olhar pra elas, visto que acolhem e convidam. Árvores dizem sobre tempo que passa e sobre nada. Há algo das raízes que alivia pensar em não tê-las. Das folhas é sabido que caem, que outras vêm e que todas se prestam ao vento. Algo dos galhos sugere percursos e desvios em comovente inexatidão. E sombras, sempre sombras. E um quê que parece tocar o céu. Árvores são boas para pausas.

quarta-feira, 18 de julho de 2007




PIANO

No piano calaram-se todas as notas por muito tempo. E o coração que achava que batia.
Os dedos tomados por outros ofícios e carícias dançavam no silêncio. Ninguém mais sabia que havia um piano que também não mais se sabia. Entretanto, nunca foi pensado vendê-lo, pois que ocupava um espaço naquela sala a hospedar as memórias dos porta-
retratos e pontuar o silêncio com sua possibilidade.
Há quem jura ter ouvido algumas notas como fantasmas perdidos, quando não havia ninguém na casa. E há quem jura ter visto a mulher que, ao fingir que também não se sabia, dançava ao som da música de seu próprio espectro que tocava.
No silêncio.
Na noite.
Por muito tempo.

quarta-feira, 11 de julho de 2007


CONVITE

Nos dias de árvore, agarram-se os pés no chão e não há quem os arranque. Bom mesmo é sair por aí a conversar com insetos, lagartos e pedras. Tem gente de tudo quanto é categoria e a gente muda de categoria de acordo com as conformidades. Tem dias de folha que servem pra sair por aí voando conforme o vento. Tem dias de vasculhar as caixinhas de esquecimento onde moram os guardadinhos, uns que nem dizem mais nada. Tem dias de ouvir que o corpo pede chazinho e chamego. Difícil é poder usufruir conforme os dias, pois que pra viver tem muita tarefa e desencontro. Dá vontade é de fugir pro mato com boa companhia e um cachorro pra ficar deitado no chão, se coçando do lado da rede e farejando o que a gente não sabe. Podia ser cachorra. Tá feito o convite (nem que for só pra imaginar).

terça-feira, 10 de julho de 2007

VALES ENTRE UM RIO


Entre os vales passava um rio e neste rio ia uma correnteza forte, muito forte, não era possível atravessar nem nadar, nada era possível.
Ele dizia lá do outro lado bem alto pra que ela ouvisse do lado de cá e dizia e dizia, ela olhava as palavras, todas elas derramando, se juntando à correnteza, nada podia ser feito.
Ela dizia do lado de cá pra que ele ouvisse do lado de lá, as palavras derramando na correnteza, nada.
Ela olhou e acenou e ele olhou através dela, e atrás dela havia um espelho onde ele se via.
Ela acenou novamente e olhou com força, com seus olhos de chuva. E viu um homem através de uma névoa. Um homem que ela não conhecia.
Choveu em cima dele e todo o vale do outro lado do rio se prestou à chuva.
Sem conseguir parar de falar, ele, através da chuva tentava vê-la, o corpo, os olhos chovendo, mas só via, através dela, o espelho.
Ela se despiu e começou a caminhar, ele a seguia também caminhando, mas não enxergava seu corpo nu. E no espelho que ele via, chovia.
Ela correu e dançou e o vale do lado de cá se atirou à primavera.
Mas nos olhos dela, de chuva, chovia. Chovia nos olhos dela enquanto ela dançava nua – a primavera era, por demais, inevitável. E nem ela queria evitá-la com seus olhos de chuva.
E no espelho, chovia.
Foi um desaforo de flor brotando pra tudo quanto era lado, no lado de cá do rio. Um desaforo de cor e cheiro e as crianças vieram também nuas, rolar sobre a primavera.
E nuas, não escondiam nada.
As crianças quiseram atravessar o rio. Como ela também quisera um milhão de vezes.
Nadaram como se não houvesse correnteza e do lado de lá se puseram a caminhar na chuva.
Ela, do lado de cá, olhava temerosa e ao mesmo tempo agradecida de que as crianças podiam atravessar o rio, sempre.
As crianças gostam da primavera e da chuva e as palavras para elas ainda dizem pouco.
A chuva diz muito, e também o espelho, o rio, os vales e a primavera.

domingo, 8 de julho de 2007


VISTA

Reinicio a vida
Vejo o mundo todo
do alto de um morro
De lá vejo um mar
de montanhas
E em cada contorno
que a tarde ondula
mora um segredo
em cada tom indecifrável
a cor da justiça
da compaixão

Assim como habita
entre as pequenas ondas
dos meus magros seios
todo o amor
que não consigo

sexta-feira, 6 de julho de 2007

O CONTRATO

para a Gi

A menina, por vocação, se prestou a bailarina. Daí que na escola onde ela aprendia, acharam que a então mocinha prestava pra ser professora. Em pleno aprendizado da dança (que tem a duração da vida), ela podia agora começar a também ensinar. Assim, a escola contratou a menina, já moça, e solicitou os documentos para oficializar o ofício devidamente. Entre os tais documentos necessários, foi-lhe pedida uma “abreugrafia”.
Nossa dançarina, com seus pensamentos de giros e saltos, não teve dúvida: estavam pedindo sua “biografia”. Alguém que vai ensinar dança, precisaria dizer sobre si mesma, sobre sua vida. Ela então ficou apertada, ao se ver com tamanha tarefa.
Começaram a cobrar-lhe o documento e ela, aflita, adiava a entrega. Era preciso dedicação e capricho. Depois de um tanto de cobrança e trabalho, chegou a bailarina na escola e entregou aquelas folhas escritas com tanto cuidado. Ao se darem conta do equívoco da menina, riram muito, sem constrangimento, e explicaram que precisavam era da “abreugrafia” e não da “biografia” da moça, coisa de pura burocracia. Ela sim, ficou muito constrangida e gravou o acontecido em sua “biografia”.
Fiquei comovida com essa história de pedirem a radiografia de seu pulmão, e ela, por engano e ingenuidade, entregar com a devida insegurança, a radiografia da alma e do coração.
Coisas de bailarina.

quinta-feira, 5 de julho de 2007



PAUSA


Peço licença
pois em ti espreito, flor
a desprender em cada pétala
o arrastado desses dias

És bela, mas passas
e perdes teu viço
bem antes da minha pausa

estou a me prestar a nada

segunda-feira, 2 de julho de 2007

VENTANIA

para Mário Quintana


Mário Quintana, em uma de suas belas crônicas, me deu (a mim e a quem quisesse para si) a palavra “ventania”. Corri a fechar as janelas pois que a palavra me pegou de maneira devastadora. Voaram os papéis, as cortinas , meus cabelos e meus pensamentos.
Pus-me a olhar a ventania através do vidro no balé das árvores e das folhas desgarradas. E pensei que olhar a ventania é enxergar o invisível, ver somente os seus efeitos e neles reconhecer o que só é possível sentir. Ventania causa efeitos físicos e afetivos – como não se afetar ao observar atentamente a ventania?
Fui me sentindo assim meio desarrumada pela ventania que, em seu rumo, roubou o meu. Desarrumada me vi: sem rumo, sem norte, desnorteada (será que era vento sul?).
Em pleno espetáculo de ventania, emocionada, agradeci ao escritor pelo generoso presente que me pôs de encontro com a minha desordem.
E percebi que algumas outras palavras “invisíveis” podem se tornar espetáculos para qualquer observador, desde que ele se preste a esse desejo. Por exemplo, “calor”, “frio” e mesmo “saudade”.

domingo, 1 de julho de 2007