sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008


29 DE FEVEREIRO

E pensa bem se não existisse o dia 29 de fevereiro pra consertar o que fatalmente caminharia para um caos! As coisas vão caminhando e, de tempos em tempos, um dia inteiro é necessário pra que as estações não se alterem, pra que as chuvas não caiam inadequadamente, pra que o frio não se meta no verão. Pelo menos a idéia seria mais ou menos essa. Tudo bem que a natureza já anda dando seus sinais de certa rebeldia, alterada mesmo pela estupidez do próprio homem.
Mas não é dado ao dia 29 o valor que lhe cabe. Deveríamos fazer festa, comemoração!
Um dia a mais nos foi programado de quatro em quatro anos (e nem é essa exatamente a precisão) pra que se acerte um monte de coisas e passa assim batido?
Se o primeiro dia do ano é tão cheio de simbologias de renovação, pensa no tanto de votos que caberiam neste dia 29 de fevereiro, o dia do conserto, da arrumação, do ajeito.
Vai que eu é que estou precisando de voltar pra um prumo, pra fazer uns acertos, reencaixar uns desencaixes.
E quem não está?

domingo, 24 de fevereiro de 2008


OUTRA VISTA DAS MONTANHAS

Pois vai que na memória um se encontra repleto de declarações e descobertas de amor. Um se cansa porque é assim, cansável. Um finge não acreditar no frescor de um dia que vem depois de outro. E um se esquiva de seguir se embasbacando com os fatos imprescindíveis e convenientes que o fizeram amar de maneira intensa e declarada, um finge que não acredita que seu amor tem poder de amplitude e continuação. Mas um se trai porque seu amor é alvo e é resgatável e um percebe que o dia que vem depois do outro tem paisagem fresca de cores fortes e um é uma criança teimosa que finge não conseguir crescer. Mas um cresce com seu amor de rosas e estradas de terra vermelha, um cresce com seu corpo de cheiros e gestos de maravilhosa indecência porque um ama assim, mesmo que o negue, mesmo que se ponha muitas vezes a dizer pra si que as coisas se acabam simplesmente.
Olha um, o mar de montanhas e por trás, mais montanhas, entre elas os vales, entre os vales os buracos, os abismos, os intervalos. Também me tenho assim, mesmo que me despiste em transparências de cores e flores e trago tudo pra bem pertinho pra não me precipitar lá onde não alcanço.
Um sabe amar como ninguém e não sabe.
Também não sei.

sábado, 23 de fevereiro de 2008


LUGAR COMUM

Ela
colecionava orvalhos
Ele
amontoava pedras
(fazia crescerem paredes)
Ela embriagava borboletas
pra assistir a uma dança nova
Ele enfileirava silêncios
alimentava-os com pensamentos
depois, enfileirava palavras
(era envaidecido de domá-las)
Ela costurava fuxicos
emendava-os com incertezas
ia fazendo tecido
que servia pra vestido de noiva
igual para velório
igual pra inaugurações
Ele fazia construção
moldava e colocava cimento
moldava de novo
colocava mais cimento
(dizia que montava futuro)
Ela foi embora
e levou sua coleção de tolices

Ele ficou com as pedras
os silêncios
os cimentos
as palavras
e o futuro ficou pronto!

(ninguém nunca soube pra quê servia)

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008


POEMINHA APAIXONADO

De ter beijado muito sapo
suponho cometer um acerto
-ter você por perto
pular essa história de príncipe
(que com ela nunca me dei)
te promover direto
te coroar meu rei

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008


PREVISÃO

Tudo estica ou encolhe
conforme o tom dessa noite
que mal se apresenta
e já se adivinha

Escudos de mil fábulas
convoco
ao desviar de cada lança
no gesto atento e exausto
da minha dança

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008




DAS MONTANHAS

Poucos prazeres se comparavam ao de chegar lá e conferir que as montanhas continuavam estáticas e disponíveis. O rio podia correr e transformar infinitamente a paisagem por onde percorria, pois afinal, tudo se move com o rio. Mas as montanhas permaneciam com uma estabilidade quase definitiva. Ir ver e estar com as montanhas era como alimentar uma quietude em constante ameaça. Conferir os contornos, averiguar que tonalidades ofereciam o clima daquele dia, a composição das nuvens, a temperatura, o cenário mutante das árvores e do mato, o cheiro do ar. Tudo em torno de uma firmeza que parecia quase real.
Foi a mulher conferir as montanhas e depois, de sua varanda, tecer seu tecido, bordar as beiradas, emendar os retalhos, construir a manta que cobriria um filho ou um amante, ou uma mãe já velha, ou um pai solitário, uma amiga, nunca um desconhecido.
Vendo as montanhas, pra que não morresse de inconstância e expectativa.
Por lá, depois, percorreria inúmeras trilhas, num quase delírio de que tudo podia.