segunda-feira, 28 de janeiro de 2008



VELHAS FUGAS

Dado que a lua devia estar cheia e eu não vi por causa das nuvens e dado que mulher tem essa coisa cíclica que se assemelha um pouco à lua e, pensa bem, que tem povo que chama a lua de masculino, não imagino o que se passa na cabeça desse tal desse povo, que a lua, de homem não tem nada, pelo menos assim é que eu penso. E dado que nesse embolamento não me restam muitas alternativas, assim, quero dizer, na prática mesmo. De super poderosa tenho só uma ou duas poses que devo confessar, já estão um pouquinho usadas demais pra não dizer gastas mesmo.
Ai, meu saco, que nem tenho que também não sou homem e que de homem também não tenho nada, mas ai meu saco de qualquer maneira, que estou a planejar umas fugas que já conheço bem, e que servem pouco pra não dizer que não servem muito. Mas vai que são pequenos salvamentos, assim como pequenos oásis neste percurso meio árido de sentidos e convicções. Fico guardando um coelho pra tirar de dentro da cartola, uma carta debaixo da manga, uns segredinhos que alimento pra não morrer de esvaziamento. E quem não tem seus segredinhos é porque deixou o trem passar e não percebeu que ia ficar sozinho.
E vou que vou, com mais um bando de afogados, tocando o carro, navegando o barco, tentando manter as rédeas nas mãos (sabendo que elas escapam).

MAGIAS DE UM AMOR

Mãe, meu dente caiu, o canino de baixo.
É, filho, nove anos, olha quantas mudanças no seu corpo.
É.(silêncio) Dessas coisas tipo Papai Noel, Fada do Dente, Coelhinho da Páscoa, qual você gosta mais, mãe?
Gosto de todos, a Fada é bem legal.
Acho que gosto mais é do Papai Noel mesmo.
Pois é...

A mãe ficou ali, pensando se ele ainda acreditava, ou o que ele estaria tentando dizer. E o dia se passou e ela quase se esqueceu do assunto, apesar de ter sempre um pequeno estoque de presentinhos do além para essas ocasiões. Já à noite, se arrumou para sair e despediu-se dele como sempre com muitos beijos e chamegos. Já estava na garagem do prédio quando o menino chamou pela janela.

Mãe, sabe o dente? Eu coloquei ele dentro de uma outra caixinha, é que não achei aquela de antes, já está debaixo do travesseiro.
Ah, sei, foi boa idéia, que bom que você arranjou uma boa solução. Beijo, meu querido.

E a mãe mudou o relógio de pulso para o outro braço pra que não se esquecesse, e amou ainda mais aquele menino, seu companheiro e cúmplice.

Passado um tempinho, ele fez dez anos. Esse amor, talvez o mais garantido, é um amor que só cresce.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008


TAREFAS DE FADA

- Substituir o dentinho de leite caído por um presentinho do além, cheio de significados.
- Amanhecer.
- Guardar com alegria, mesmo que já em atraso, os enfeites do Natal.
- Sair voando por aí.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

“Não esqueçamos o goofus bird, pássaro que constrói o ninho ao contrário e voa para trás, porque não quer saber para onde vai, e sim onde esteve.”

“O cem-cabeças é um peixe criado pelo karma de umas palavras, por sua repercussão póstuma no tempo.”

Jorge Luis Borges, “O Livro dos Seres Imaginários”

DAS INVENÇÕES

Pensou se seriam sempre repetições dela mesma, anos a fio, aquelas pessoas meio andróginas que eram recorrentes em seus desenhos. Vinham todas de um mesmo buraco.
E foi que o ser amado disse a ela: bonito o desenho, a expressão.
Foi o suficiente pra que o papel não fosse parar no lixo. Foi guardado dentro do livro dos seres imaginários (J.L.Borges), presenteado por ele.
Seres imaginários existem, de vários tipos, as crianças mesmo têm os seus, que os declaram amigos. De certa forma, somos seres imaginários de outros seres, e de nós mesmos.
Eram muitos os seres que acompanhavam os dias daquela mulher, que ao longo dos anos envelhecia, e que pra manter-se em funcionamento normal, debochava de si mesma às vezes, principalmente quando se tratava do amor. Achava curioso que alguns de seus sentimentos evoluíam muito pouco com o tempo, que se pegava a quase morrer em armadilhas que já conhecia.
Algumas funções haveriam de dar sentido à vida, ou pelo menos disfarçar a tolice que tudo parecia. Nada tem importância (e se dava conta do quanto precisava profundamente daquele nada que restaurasse alguma importância concreta).
Seres imaginários existem assim como um amor seguro e persistente, nunca deixaria de acreditar, mesmo que tudo lhe parecesse condenado à ilusão. Lá dentro dos olhos daquelas pessoas que desenhava, lá no meio das cores que pintava, das paisagens, dos borrões, anos a fio, a vida.
Tudo sem a menor importância, tudo invenção.
E foi que chegou outro presente do amado – uma caixa de ferramentas para a imaginação, um mundo de cores dentro de um belíssimo estojo. Ela foi passeando os dedos sobre os lápis perfeitamente encaixados no veludo, suavemente, um por um, como uma carícia, as nuances, os tons, os relevos, eroticamente, um gesto de amor.
Mesmo afogada e perdida em meio a tantas condenações, ficou agradecida.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008


CONTINUAÇÃO

Prosseguindo, uma amiga disse com certo sarcasmo que a vida realmente não é necessária, mas as pequenas ilusões, essas sim, são necessárias à vida.
Vamos deitar aqui e deixar o dia passar, nada é importante.
A propósito, o síndico disse que o zelador levou o extintor de incêndio pra recarregar, e que não havia sido roubado como imaginou.
Muito satisfatório não preocuparmos com possíveis incêndios.
E zelavam-se as amigas, cúmplices de reconhecimentos e constatações.
Minha amiga, sei que dor é essa. Lembra do humor do seu analista ao te perguntar, na sua chegada no dia seguinte: e então, não morreu não, né? Está viva?
E você respondeu entre prantos e risos: fazer o que?
E em meio às angustiantes desimportâncias daquele momento, o dia foi se desfazendo
em nada,
pra nada.